Leia a seguir a reportagem literária escrita pelos acadêmicos de Jornalismo da UniSatc e funcionários da Rádio Marconi, Edi Carlos De Rezende e Karine Possamai Della. 


Foi a luz passando pelas frestas dos janelões vermelhos junto com os burburinhos que o fizeram acordar. Braz Ciseski, de já quase 8 anos, acordou cedo no domingo de manhã. Mas ele não era o único já se preparando para o dia do Senhor. Logo ao abrir os olhos, sua irmã já apressava ele e os outros quatro irmãos da família. Essa é uma das primeiras memórias que se lembra do Paraíso da Criança: sua irmã Teresinha dando banho em um dos tanques da lavanderia. Depois, a freira do abrigo o vestindo com o tradicional uniforme para as Santas Missas. Uma camisa branca passada e uma calça social xadrez vermelha. Após vestir as roupas, a freira ajeitava os seus sapatos pretos em seus pés.

Essa era a rotina de Braz e seus outros cinco irmãos, há sete anos no orfanato. A família Ciseski foi acolhida pelo padre Monsenhor Agenor Neves Marques após a mãe ser internada por depressão e o pai falecer. Braz chegou ao abrigo ainda com meses de idade e, desde então, passava os dias com os irmãos de sangue, assim como outros tantos irmãos do Paraíso. O domingo era um dos seus dias da semana favorito, não só dele, mas de todas as outras crianças. Nesse dia todos acordavam cedo para ouvir os ensinamentos de Monsenhor durante a missa, além de passar um tempo com o homem que consideravam como um verdadeiro pai.

Não muito longe dali, em um outro quarto, Teresinha Kamola Costa, a Kamola, ajudava os mais jovens a se vestirem também. Como já tinha concluído a 4ª série, Kamola passou a cuidar, junto com outras meninas e freiras, dos serviços da instituição, além de ajudar as crianças mais novas atendidas pelo Paraíso. Kamola também possui uma história um pouco parecida com a de Braz. Kamola chegou ao paraíso aos 8 anos, após a mãe falecer e o pai entregar as cinco filhas a outras pessoas. Kamola ficou aos cuidados da avó materna, que já era de idade e, por isso, conseguiu uma vaga para a neta no orfanato Paraíso da Criança, como era chamado em 1958.

Quando todos já estavam prontos, as Irmãs Beneditinas conduziam as quase 100 crianças em fila indiana até a Igreja Matriz, no Centro de Urussanga. O caminho não era longo, apenas 500 passos e todos já estavam se acomodando nos bancos de madeira. Algumas crianças ajudavam durante a celebração e, nesse dia, Braz estava servindo como coroinha. Apesar de estar empolgado para a missa, o jovem estava cansado. No dia anterior, ele e o seu irmão, de 9 anos, foram juntos com o padre na comunidade de Santana. Lá, os dois foram até o interior atrás de uma caminhonete. Enquanto Monsenhor celebrava a missa, Braz e seu irmão esperavam o rito terminar para que pudessem vender picolés. Mesmo tendo 7 e 9 anos, os irmãos tentavam, de alguma forma, ajudar na arrecadação de recursos que contribuíssem na continuação dos trabalhos do Paraíso. Naquele domingo de manhã cedo, Braz, o coroinha, cochilou durante a homilia.

A missa não demorou mais do que uma hora e meia para terminar. Após a celebração, todos fizeram novamente o trajeto até o abrigo, que ficava atrás da igreja, subindo o morro da rua da Criança. Chegando ao espaço, as meninas mais velhas, como a Kamola, preparavam-se para fazer o almoço de domingo. Além disso, as jovens já precisavam deixar todos os detalhes prontos para a segunda-feira, quando as aulas novamente iniciavam, já que, além das crianças do abrigo, a Escola do Paraíso também atendia alunos de toda Urussanga e região.

Só que o sentimento de viver no Paraíso da Criança era muito mais do que viver a mesma rotina com os acolhidos. Mesmo após quase três décadas, Braz e Kamola lembram e revivem todos os momentos que se recordam do abrigo. Kamola, já com 72 anos, viúva, com filhos e netos, ainda mora em uma casa que fica dentro do espaço do Paraíso. Há quatro décadas exerce um importante trabalho que aprendeu com o Monsenhor. “Uma das tarefas que o padre Agenor me deu, mesmo depois de eu ter deixado o Paraíso, era para tocar o sino da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição. Tinha alguns homens mais velhos que tocavam o sino, eles foram envelhecendo e começaram a ensinar as meninas do Paraíso. Com o tempo, as jovens deixaram a instituição, foi quando o padre Agenor insistiu para eu assumir esse compromisso. Já faz mais de 40 anos que eu faço isso, tocar o sino da igreja”, lembra Kamola.

Kamola. Foto: Edi Carlos De Rezende

Braz e seus irmãos tinham uma relação muito mais do que órfãos acolhidos pelo Paraíso. “A gente tinha uma ligação afetiva, pois toda vez que a gente chorava por algo, nós corríamos para a casa paroquial. Lá o padre Agenor nos pegava no colo, nos abraçava e depois deixava a gente mais tranquilos. Até hoje eu lembro dele como um pai, presente na nossa vida, que dava amor e muito carinho para mim e para meus irmãos”, conta. Esse sentimento também era retribuído pelo Monsenhor. Durante as férias, todas as crianças passavam o período na casa de parentes e familiares. E a família Ciseski viveu isso na casa do pai do padre Agenor, o senhor Natalino. Todas as férias os cinco irmãos passavam os dias na casinha de madeira, na comunidade de Rancho dos Bugres.

Diferente de Kamola, Braz se mudou aos 9 anos para outro abrigo em Florianópolis. Depois de crescido, o jovem retornou a Urussanga e constituiu sua família, sempre lembrando dos momentos, alegres ou tristes, que viveu no Paraíso e junto com o Monsenhor. Kamola recorda momentos marcantes durante a vida no orfanato. Em datas comemorativas, na Páscoa, no Dia dos Pais e Dia das Mães e no Dia da Independência havia festinhas no Paraíso. Porém, essas festas não eram feitas nas datas de nascimento dos órfãos. “Uma coisa que eu lembro é que a gente, já adolescente, não sabia quando fazia aniversário. Não eram realizadas festinhas para comemorar. A gente ia crescendo, passando de ano, de dez pra onze, de onze pra doze, nós nem sabíamos quando era o aniversário. Eu fui saber quando fazia aniversário já com quatorze ou quinze anos”, afirma.

Kamola e Braz consideram, até hoje, o padre Agenor como a referência necessária para a vida deles e de suas famílias. Semelhante ao que contam os dois, houve mais de mil histórias de vida de crianças e adolescentes que passaram pelo Paraíso da Criança durante os anos de acolhimento, entre as décadas de 50 e 80. As histórias dos dois, assim como a de outras várias crianças, só foi possível por causa do senhor de Monsenhor Agenor Neves Marques, o homem que é um dos ícones de Urussanga por todos os trabalhos que desenvolveu para a região.

Braz, Kamola e a Teresinha, a “Neguinha”, como é conhecida. Foto: Edi Carlos De Rezende

O começo do Paraíso

“O Paraíso foi um sonho que se tornou realidade pelo trabalho de um batalhador incansável. Cada vez mais que anos se distanciam vejo em minha mente o padre como cada vez mais gigante”. Isso é o que pensa o historiador urussanguense, Sérgio Roberto Maestrelli, que foi aluno externo nos quatro anos de primário no Paraíso. “Todo dia, quando se aproxima das 18 horas, a hora da Ave Maria, em minha mente uma cena milhares de vezes repetidas: as crianças internas do Paraíso descendo em bloco para, juntamente com padre Agenor, às 18h30, rezar a Ave Maria em latim e com a benção do Santíssimo Sacramento e eu buscando brasas na Churrascaria Tropical para a queima do incenso”, recorda Maestrelli.

Mas a história do Paraíso da Criança se inicia muito antes, quando Agenor ainda era seminarista em São Leopoldo, antes dos anos 40. Rosa Miotello, que dividiu o microfone da Rádio Marconi durante muitos anos com o padre ao apresentar o programa Andorinha Mensageira, conta que o desejo de Monsenhor surgiu por conta de uma obra cinematográfica. “Os seminaristas foram assistir a um filme, era um filme francês. Nesse filme contava a história de um padre que tinha um orfanato, que trabalhava com as crianças, e ele ficou encantado com aquela história, daquele filme, daquele padre, com o acolhimento que ele tinha com as crianças, então ele sempre sonhou em ter algo assim”, relembra.

Rosa Miotello. Foto: Karine Della

Monsenhor chegou em Urussanga no final dos anos 40 e as mudanças começaram a ser vistas em pouco tempo. O Paraíso da Criança foi criado após Agenor se deparar com um problema na cidade: a mineração. Boa parte das famílias urussanguenses dependiam dos trabalhos da mina. Lutando pelo objetivo de sustentar a própria casa, muitos pais e mães de família acabavam morrendo por conta do trabalho. Monsenhor começou a acolher os órfãos do interior de Urussanga no casarão no fim da rua da Criança. A instituição foi fundada em agosto de 1948 e, aos poucos, o Paraíso deixou de atender somente meninas e adolescentes, passando a atender meninos também. “Ele já tinha esse sonho de ter um orfanato e uma escola junto, então ali além de ter um internato para as adolescentes, que vinham de fora e que pagavam. Com esse dinheiro, o padre Agenor podia fazer manutenção da estrutura, criou uma escola maternal e um jardim de infância”, afirma Rosa.

Fachada atual do Paraíso da Criança

Rosa conta que o local comportava muitas salas e que eram duas alas abertas com muitas camas, em cada espaço havia 40 camas para as crianças e adolescentes que eram órfãos. “Tinha outra parte com quartos para as meninas internas, estas que pagavam para estar ali e tinham aulas de música, bordado. Elas se abrigavam no Paraíso, mas estudavam em outra escola de Urussanga’’, recorda Rosa. Passados quase 74 anos de fundação, o Paraíso da Criança agora é um abrigo provisório para crianças e adolescentes que precisam estar afastados da família por decisão judicial ou por medida do Conselho Tutelar.

Para que houvesse a sequência dos atendimentos, o padre tentava todas as alternativas possíveis para o bem-estar dos acolhidos e a conservação da parte estrutural da casa. Rosa Miotello conta que o que era conseguido tinha efeitos positivos a todos. Por isso, o padre Agenor firmava convênios com o governo do estado e o paraíso para ter atendimentos médicos e odontológicos e enfermeiros à disposição das pessoas. Quem não tinha condições financeiras boas podia ir até o antigo Sesi que funcionava dentro das instalações do Paraíso. Todos eram atendidos.

Havia também os momentos de dificuldades e problemas por falta de mantimentos para no dia a dia alimentar todas as crianças. O padre Agenor e a diretora Irmã Faustina tinham muita fé e devoção a São José e não se intimidavam em meio às dificuldades. “Lembro que eles recorriam ao São José. E tinha uma situação que ocorria, quando faltava alguma coisa, a freira Faustina tinha o hábito de pôr o pedido junto à imagem de São José e com uma caneta nas mãos dele. Logo ela saia para fazer a oração e pedir a graça, ia na capela e rezava pedindo que não faltasse comida. Quando a caneta caía das mãos de São José, logo aparecia gente indo doar comida no paraíso, era a graça alcançada”, garante Rosa.

Imagem do São José na entrada do Paraíso. Foto: Edi Carlos De Rezende

Para Maestrelli, o Paraíso da Criança era uma estrada carregada de pedras e espinhos que afloraram pelos caminhos, e mesmo assim seus mestres conseguiram conduzir mais de mil crianças para a vida adulta. “Hoje entro no Paraíso e observo aquele espaço vazio sendo contornado com garra e trabalho pela Kamola, Neguinha e outras, fico emocionado. Entro, vejo o vazio, mas em meus ouvidos a algazarra dos anos 60 ainda continua vibrando em minhas memórias, em meu ser. Crianças correndo pelo pátio, nos balanços, no pular corda. Era a vida em sua expressão e explosão máxima”, completa o historiador.

Sérgio Maestrelli. Foto: Edi Carlos De Rezende

Sérgio Maestrelli, que guarda para a história os livros, as fotos e diversos itens utilizados pelo padre Agenor, conhecia muito bem o idealizador do Paraíso da Criança. Em uma oportunidade, no ano de 2001, Sérgio perguntou ao padre qual foi a maior graça recebida dos Céus. “E ele mais rápido que o raio que surge numa trovoada, quase se levantou da cadeira de rodas, em frente ao paraíso, e abrindo os braços disse: foi a de ter passado por esta construção aí atrás, mais de mil crianças e eu não ter feito o enterro de nenhuma delas. Nenhuma criança morreu no Paraíso! E ele desatou em um grande choro, e eu também”.

 

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