O Tribunal de Justiça aceitou a denúncia do Ministério Público de Santa Catarina contra o prefeito de Urussanga e outros envolvidos na Operação Terra Nostra. Com isso, o prefeito Luis Gustavo Cancellier, os vereadores Thiago Mutini e Elson Roberto Ramos (Beto Cabeludo) e o ex-servidor comissionado Marcial David Murara (Xixo), que já estão presos preventivamente, tornaram-se réus no processo. Além disso, Ramom Bettiol, Paulo Manoel Serafim, Gabriel Damiani, Filippe Echamendi Possamai, Edson Manoel, Albertina Pedra Serafim, Jerson Maragno e Ademir Brandieli Pedro, que foram investigados na operação, também se tornaram réus.

Na decisão, o Tribunal de Justiça solicita para que os envolvidos ofereçam resposta à denúncia em um prazo de 15 dias. No documento do despacho, o TJSC defere que a tramitação dos autos ocorra sem segredo de justiça.

Entenda

A Operação Terra Nostra, da Polícia Civil, teve suas fases deflagradas no dia 21 de março e no dia 16 de abril de 2024. Na segunda fase, quatro envolvidos foram presos preventivamente, entre eles o prefeito e dois vereadores. Toda a investigação apurou a compra de lotes pela prefeitura com valores superfaturados. Conforme a denúncia do Ministério Público de Santa Catarina, os crimes envolvem organização criminosa, corrupção passiva e ativa, desvio de renda pública e falsidade ideológica.

Da organização criminosa

Segundo a denúncia do MPSC, a organização criminosa era composta por Luis Gustavo, Thiago Mutini, Xixo e por Ademir Brandieli Pedro, Edson Manoel, Filippe Echamendi Possamai e Gabriel Damiani. Com exceção do prefeito, o restante fazia parte da Comissão Municipal de Avaliação de Bens Imóveis. Conforme a denúncia, Ademir fez parte da comissão até setembro de 2023. Com isso, o prefeito nomeou o vereador Thiago para integrar a comissão.

Segundo a denúncia, o caso teria iniciado em 2021, quando o prefeito encontrou na Comissão Municipal de Avaliação de Bens Imóveis uma forma de adquirir, por meio de desapropriação, terrenos privados superfaturados, porém sem interesse público efetivo.

Em 2023, meses após o retorno de Cancellier a prefeitura, depois de ficar 13 meses afastado do cargo por conta da Operação Benedetta, da Polícia Federal, o prefeito voltou a estabelecer uma estrutura pessoal dentro da prefeitura. Conforme o MP, essa era uma forma de usar seus correligionários de confiança para utilizar a estrutura do município em prol da obtenção de benefícios indevidos.

Leia um trecho da denúncia do MPSC sobre como funcionava a organização criminosa:

Com esse objetivo criminoso, LUIS GUSTAVO CANCELLIER começou a usar as atribuições inerentes ao cargo de Prefeito Municipal para declarar, indevidamente, o interesse público ou social de determinados bens particulares, cuja necessidade não existia ou não era prioritária para o Município de Urussanga.

Dessa forma, uma vez declarada a utilidade pública dos imóveis, com base no Decreto n. 3.365/42, a Comissão Municipal de Avaliação de Bens Imóveis, ocupada por pessoas indicadas pelo denunciado LUIS GUSTAVO CANCELLIER e em conluio com ele, engendravam avaliações de mercado com imobiliárias da região. O objetivo era, de forma falsa e documentada, estabelecer um valor acima do praticado no mercado imobiliário para bens de mesma similitude.

Essas avaliações – realizadas por particulares cooptados – atribuíam aos imóveis alvo valores incompatíveis e significativamente mais altos do que os praticados no mercado. Além disso, negligenciavam deliberadamente condições e características que indicavam desvalorização no mercado (como declividade do terreno, presença de Área de Preservação Permanente e área alagadiça, acesso difícil ou pendências judiciais e/ou ambientais). Assim, criavam se, de forma artificial e falsa, preços que não representavam, nem de longe, a realidade dos imóveis.

Portanto, com base em avaliações falsamente criadas, a Comissão Municipal de Avaliação de Bens Imóveis, que já estava em conluio com o gestor municipal e ciente da falsidade das avaliações, legitimava os valores inflacionados atribuídos aos bens, autorizando o pagamento como indenização. Com essa conduta, eles desviavam para proveito próprio ou de terceiros valores que possuíam em razão dos cargos que exerciam, ou ofereciam ou recebiam vantagens indevidas.

Além disso, os terceiros, proprietários dos bens desapropriados, acabavam recebendo como indenização valores significativamente maiores do que o valor real dos bens desapropriados, enriquecendo-se ilicitamente e obtendo assim uma vantagem econômica indevida.

Por outro lado, o Município de Urussanga acabava sendo prejudicado em dobro, pois além de pagar uma indenização volumosa e indevidamente inflacionada, acabava por incluir em sua lista de bens públicos imóveis cuja declaração de utilidade pública não atendia ao verdadeiro interesse público de Urussanga.

Conforme a denúncia do MPSC, os envolvidos, principalmente o prefeito Luis Gustavo, Thiago, Filippe e Xixo articulavam sobre as avaliações e documentos da comissão. No documento, o MP ainda cita que:

ADEMIR BRANDIELI PEDRO, GABRIEL DAMIANI e EDSON MANOEL, dentro do contexto da organização criminosa, desempenhavam a função inerente a de membros da Comissão Municipal de Avaliação de Bens Imóveis.

Assim, ainda que os denunciados não realizassem contatos, interlocução, ajustes ou a manipulação dos documentos públicos para dar ares de legalidade ao procedimento fraudado, exerciam um importante papel dentro da dinâmica criminosa, pois era justamente a decisão desviada e colegiada da Comissão Municipal de Avaliação de Bens Imóveis em avaliar, de forma superfaturada, os bens desapropriados, que viabilizava toda a fraude e posterior desvio da verba pública. 

Dos crimes de desvio de renda pública e falsidade ideológica

A denúncia está ligada a compra de um terreno para a construção da Área Industrial 3. As investigações salientam que o prefeito fez a compra mesmo sabendo que a Área Industrial 1 possuía lotes disponíveis e que as obras da Área Industrial 2 não tinham sido concluídas ainda. Na denúncia, para comprar o lote, o prefeito, em maio de 2023, editou o decreto constituindo os membros da Comissão Municipal de Avaliação de Bens Imóveis, no qual os integrantes são cinco dos denunciados.  A nova comissão aprovou a compra do terreno no valor de R$ 1.299.951,08. A perícia apontou que, na verdade, o lote em questão tem um valor de avaliação de R$ 848.487,00. Isso porque o terreno possui uma possível área de preservação ambiental, além de ser uma área inundável, desvalorizando a propriedade.

Dessa forma, conforme o MPSC, em maio de 2023, o prefeito Luis Gustavo, Ademir, Edson, Filippe, Gabriel e o Xixo, aliados aos particulares Jerson Maragno, Albertina Pedra Serafim e Paulo Manoel Serafin desviaram, em proveito próprio e alheio, renda pública. Conforme a denúncia, Jerson foi o responsável por intermediar a aquisição do imóvel por valor superior ao do mercado e recebendo comissão pelo “serviço” prestado. Já Albertina e Paulo são proprietários da empresa dona do lote.

Segundo a denúncia, para justificar o valor superfaturado da compra, os membros da comissão usaram como base a avaliação de três imobiliárias diferentes. “Entretanto, a integridade das avaliações realizadas pelos profissionais que, supostamente, foram consultados pela Comissão Municipal, é, no mínimo, questionável”, afirma a denúncia do MPSC. Conforme a denúncia, a ação da organização criminosa resultou no desvio de, pelo menos, R$ 571.436,55, em benefício a empresa proprietária do terreno. “Renda essa oriunda dos cofres públicos do Município de Urussanga, que suportou o prejuízo financeiro em detrimento da garantia dos interesses pessoais de seu gestor e do antigo proprietário do imóvel”, destaca a denúncia apresentada pelo Ministério Público.

Crimes de corrupção ativa e passiva, desvio de renda pública e falsidade ideológica

A situação envolve um segundo lote, de propriedade de Ramom Bettiol e Beto Cabeludo. Segundo as investigações, o lote foi arrematado em leilão, em 2021, no valor de R$ 55 mil. Conforme a denúncia, embora as documentações estejam no nome de Ramon, o lote foi adquirido por ele em sociedade com Beto Cabeludo. Apesar do valor aproximado de R$ 55 mil, esse terreno foi adquirido pela prefeitura de Urussanga por R$ 643.540,00. Esse valor superfaturado foi uma forma do prefeito Luis Gustavo comprar o apoio político do vereador Beto, que era de oposição ao seu governo. A denúncia do MPSC apresenta diversas provas que colaboraram com a mudança de postura política de Beto a partir da metade de 2023. O documento ainda cita que o prefeito sabia das dificuldades financeiras do vereador e, por isso, para obter o apoio dele, expressou interesse em desapropriar o terreno.

De acordo com o Ministério Público, nesse terreno a comissão também usou como base a avaliação de três corretores para justificar a compra com o valor superfaturado. Em uma das avaliações, a investigação descobriu que o pedido não foi feito pela comissão, e sim por uma pessoa que trabalha em uma imobiliária. A pessoa teria encaminhado fotos do terreno para o avaliador, que nem foi ao local para fazer o laudo com o valor da avaliação. Essa pessoa, inclusive, já trabalhou na prefeitura entre 2018 e 2023, tendo sido testemunha do prefeito no processo da Operação Benedetta. Ela também foi uma das denunciadas por falso testemunho.

Além dessa pessoa, um ex-secretário de Obras também foi denunciado por falso testemunho. O TJ julgou que essa situação deve ser julgada pela Comarca de Urussanga, não competindo a eles essa questão.

Pontos importantes no processo

Para destacar a existência de uma organização criminosa, a denúncia do Ministério Público conta com diversas evidências. Entre elas, estão as conversas no WhatsApp, no qual os envolvidos marcavam encontros presenciais para tratar sobre os assuntos. Além disso, diversas mensagens foram apagadas no aplicativo. Em um trecho da denúncia, por exemplo, o MP cita que “a sequência dessa conversa revela a hierarquia do denunciado e o cuidado da organização criminosa em não deixar rastros ou sinais de suas atividades espúrias” sobre um dos prints de uma conversa de Xixo e uma servidora comissionada da prefeitura.

Outro ponto destacado no processo é que o prefeito Luis Gustavo utilizava de celulares de outras pessoas, como o de sua esposa e de uma servidora comissionada da prefeitura. “Não o bastante, verificou-se que os principais atores da trama criminosa costumavam se valer de celulares de terceiros para travar conversas e discussões, providência esta que, somada aos elementos de convicção colacionados no inquérito policial, demonstram a ilicitude do teor dos contatos”. Além disso, conforme a denúncia, várias mensagens entre os envolvidos eram apagadas. Em uma das conversas, Xixo orienta para que uma servidora, que tinha o celular usado pelo prefeito, e que Thiago usassem o aplicativo “Signal”, já que, segundo o denunciado, “era menos rastreável”.

Em um determinado trecho da denúncia, é possível notar a influência de Xixo sob o prefeito. Isso porque Xixo busca prestar assessoria ao prefeito em questões sensíveis junto à imprensa, além da realização de discursos. Em um dos prints, por exemplo, Xixo manda ao prefeito Luis Gustavo o discurso para ser lido na abertura da Festa do Vinho, em 2023. Uma das mensagens de Xixo é: “O elemento, o discurso vai na linha de fortalecer o projeto do turismo e por isso fazer anual. Mais uma coisa no final é pra dar uma pancadinha e se vitimizar (ISSO É MUITO IMPORTANTE)”. Em um outro trecho, Xixo encaminha um discurso para o prefeito fazer em um encontro de uma igreja evangélica. Após encaminhar o discurso, Xixo manda as seguintes mensagens: “O aponta pra cima é pra te lembrar de levantar o braço e o dedo pro céu”; “Esse é um discurso pra ser feito com cerenidade, sem parecer com raiva”.