O programa Ponto de Encontro desta semana relembrou uma das maiores tragédias ocorridas em estabelecimentos de entretenimento no Brasil e no mundo. Recentemente, completaram-se dez anos do fatídico incêndio na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria (RS). Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, um domingo, a história da cidade universitária foi profundamente marcada pelo evento que resultou na morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos. A tragédia foi atribuída a uma série de irregularidades, condutas impróprias e negligências que acabaram por contribuir para a ocorrência do desastre.
Em janeiro deste ano, a Netflix lançou a série “Todo Dia a Mesma Noite”, baseada no livro da jornalista Daniela Arbex, publicado em 2018. A produção representa um importante passo para reacender a reflexão e a discussão acerca da tragédia ocorrida na Boate Kiss. Sobretudo, a obra evidencia a necessidade de se fazer justiça, uma vez que, até o momento, ninguém foi efetivamente responsabilizado pelos fatos.
Esse sentimento de indignação e luta por justiça é vivido todos os dias pela senhora Ligiane Righi da Silva. Na noite de 26 de janeiro de 2013, ela se despediu da filha Andrielle Righi da Silva, que saiu de casa para comemorar o aniversário de 22 anos, completados três dias antes da festa na casa noturna. Andri, como era conhecida por familiares e amigos, foi uma das vítimas do incêndio ocorrido na Boate Kiss.
Em uma entrevista especial concedida ao comunicador Jair De Ávila, a mãe descreveu para os ouvintes a sua filha como uma menina alegre e espontânea. “Ela foi sempre uma criança muito tranquila, amamentei ela até quase 3 anos. Por cinco anos ela reinou aqui em casa, depois eu fiquei grávida da Gabrielle. A Andrielle era muito ‘de boas’, de bem com a vida e obediente”, conta a mãe. Ligiane revelou que, quando Andrielle era mais nova, ela era superprotetora e não deixava a filha sair de casa. Mas depois que Andri fez 18 anos, formou um grupo de amigas inseparáveis e juntas saíam para aproveitar a vida. “Com 18 anos, ela dizia: ‘Mãe, as gurias querem sair em tal lugar, vamos todas juntas, tudo de boa’. Sempre era ela, a Vitória, a Flavinha e a Gilmara. Desde os 18 anos, elas comemoravam os aniversários juntas”, lembra. Segundo Ligiane, “a marca registrada dela era a calça jeans e o All Star”.

Dez anos se passaram desde a tragédia, mas para as famílias das vítimas, cada detalhe permanece como se tivesse ocorrido ontem. Ainda é possível sentir o medo que sentiram ao serem acordados e a forma como foram surpreendidos com a notícia. Cada memória é como uma ferida aberta, uma dor que nunca cicatriza. “Desde o momento que o telefone tocou às 5 horas da manhã, eu tenho isso registrado na cabeça. De vez em quando, essas lembranças surgem, sabe? As pessoas dizem que a gente tem que virar a página, que a vida continua, mas elas não viveram o domingo que nós vivemos”, recorda. “Aí vem uma pessoa que não conhece a nossa vida e vem dizer para a gente esquecer, tocar a vida, virar a página e superar. Superar não existe para nós. Superação é uma palavra que não existe para nenhum dos pais. Tu não supera um filho. Superação são obstáculos que tu tens na tua vida. Filho nunca é e nunca vai ser um obstáculo para nós. Nunca foi”, desabafa Ligiane.
É compreensível que muitas pessoas não queiram falar sobre o assunto, afinal, relembrar o ocorrido é extremamente desgastante e doloroso. No entanto, para Ligiane, falar sobre o incêndio é uma maneira de prevenir que novas tragédias aconteçam. Mesmo que seja difícil reviver a dor, ela acredita que é importante compartilhar a história para conscientizar e alertar sobre os perigos e as possíveis falhas que podem levar a eventos como esse. É um ato de coragem e empatia que pode ajudar a proteger outras pessoas e a honrar a memória daqueles que foram perdidos. “Eu jurei para ela que o que aconteceu com ela e com as amigas eu nunca iria deixar cair no esquecimento. Então é uma promessa minha para ela. Eu prometi. É isso que me mantém em pé. Não deixar cair no esquecimento. Se a gente tem que dar entrevista e lembrar do que aconteceu, a gente lembra todos os dias. É doloroso todos os dias. Eu durmo pensando nela, eu acordo pensando nela. Toca uma música e eu lembro dela. O cheiro do café eu lembro dela. Então, é a promessa que eu fiz e eu vou cumprir. Enquanto eu tiver saúde, enquanto eu estiver viva, eu vou lutar e fazer com que ninguém esqueça o que aconteceu com elas”, afirma a mãe emocionada.
Ouça a entrevista completa com Ligiane Righi:
Como mencionado anteriormente, uma série de condutas e negligências culminaram em um dos piores episódios que este país já presenciou. Infelizmente, muitas perguntas ainda não foram respondidas. Uma década depois, o sentimento de indignação e o desejo de levar a julgamento todos aqueles que tiveram responsabilidade pela tragédia ainda afloram Santa Maria. “As pessoas falam: ‘Por que não tem mais pessoas no banco dos réus?’ Nós batalhamos, a gente foi nas ruas, fizemos manifestações. Nós não vivemos nosso luto porque, quando aconteceu, estávamos nas ruas pedindo justiça. Éramos taxados de loucos por sair pedindo mais responsáveis, incluindo a prefeitura, entidades públicas e bombeiros. A gente pediu, a gente correu atrás disso”.
O pai de Andrielle, Flávio José da Silva, que presidiu a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), enfrentou processos judiciais em sua luta pela legitimação da memória das vítimas. “Alguns pais foram até processados. O Flávio foi processado simplesmente por expor a verdade. Ele botou a foto de um promotor de justiça e, por um ano inteiro, vivemos aquela angústia, sem saber se ele seria preso ou não. Tu não sabe o que foi esse ano. De ficar imaginando só eu e a Gabriele e o Flávio preso, enquanto os responsáveis pelo que aconteceu estavam soltos. Na verdade, estão soltos até hoje. Agora, ele um pai que estava gritando por justiça, eu tinha certeza de que ele seria preso”, narrou Ligiane aos microfones da Rádio Marconi.
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A luta dos familiares e sobreviventes também é pautada na conscientização e na esperança de que outras pessoas nunca tenham que sentir a dor vivenciada nesse trauma. “Para mim, a justiça mais certa, exata e verdadeira é a minha filha quando quiser sair, ou outros jovens quando quiserem sair, ter extintor de incêndio, ter mais do que uma porta de saída, ter cinco, seis portas de saída. Não ter barra de contenção, não ser a ratoeira que era a Boate Kiss. Porque eu entrei lá dentro e eu vi, eu imaginava uma coisa, é pior do que eu imaginava. Pensa num lugar que mais cedo ou mais tarde aquilo iria acontecer, chama-se Boate Kiss, independentemente de ter sido no dia 27 de janeiro. Mais cedo ou mais tarde, iria acontecer aquilo. Ali era uma panela de pressão que iria estourar e justamente estourou quando a minha filha foi comemorar o aniversário dela e os 241 jovens. Então, para mim, a justiça concreta é essa: ter segurança, é os jovens saírem e saberem que vão voltar, os pais deixarem os filhos saírem e saberem que eles vão voltar para casa. Eu até hoje espero a porta da minha casa ser aberta”, conclui.
A Rádio Marconi agradece imensamente à senhora Ligiane Righi da Silva, uma mãe que deu voz à sua filha por amor. Aos demais familiares, apresentamos nossos sinceros sentimentos.
Edição: Gustavo Marques